Planeta  e Revista Exame 16/06/99 - continuação

Pois é. Daria para resumir toda a história que você vai ler abaixo em uma única letra: e. De eletrônico.

Sei. Você é daqueles céticos que ainda acham que a Internet é um brinquedinho muito bacana, mas não dá dinheiro. Não cansa de se perguntar o que passa na cabeça dos investidores americanos quando uma empresa como a Amazon.com, a livraria virtual que só deu prejuízo até hoje (ela faturou 610 milhões de dólares em 1998, mas suas perdas foram de 124,5 milhões no ano passado e a previsão é que passem de 570 milhões neste ano), é avaliada em 17,5 bilhões de dólares, mais que todas as demais redes tradicionais de livrarias americanas somadas. Ou então por que uma empresa até há pouco praticamente desconhecida como a Starmedia, o site para internautas latino-americanos que comprou aqui no Brasil o popular Cadê?, apesar de ter faturado em 1998 apenas 5,3 milhões de dólares e de ter registrado prejuízo de quase 46 milhões, tem um valor de mercado de mais de 2 bilhões de dólares. Ou seja: um obscuro site na Web vale praticamente tanto quanto uma empresa estabelecida há anos como a Aracruz ou a Sabesp e bem mais que o Pão de Açúcar, cujo valor de mercado no início de junho era de 1,45 bilhão de dólares.

Oops! Deu a louca no mundo dos negócios? A fórmula para ficar rico agora pode ser investir justamente em empresas que perdem dinheiro? Onde foi parar a equação lucro = preço - custos? O capitalismo acabou? Calma. É bem verdade que, de uma hora para outra, todo o valor da Starmedia e das ações ligadas à Internet pode virar pó nas bolsas americanas. Mas será que o mercado acionário pode estar tão enganado assim?

Não, você não está olhando para o mundo através de uma lente que vira tudo de ponta-cabeça. Tudo pode até parecer loucura à primeira vista, mas, como Polônio disse a Hamlet, há um método nessa loucura. Para entender a excepcional transformação que a Internet está provocando no mundo dos negócios, é preciso deixar de lado muito do pão-pão, queijo-queijo que você aprendeu até agora e pensar no capitalismo a partir de um posto de observação mais avançado, que até há pouco nem era concebível. Ouça o que disse o futurólogo Alvin Toffler em recente visita a Porto Alegre: "Quantas pessoas têm televisão no Brasil? Quase todo mundo, não é? Em 10 ou 15 anos, os computadores estarão mais baratos que os aparelhos de TV. Aliás, o computador vai estar na televisão. Será um mundo em que quase todos terão acesso à Internet. Ela será universal". Compare: o rádio levou 38 anos para atingir uma audiência de 50 milhões de pessoas; a TV aberta, 16 anos; a TV a cabo, 10. A Web? Meros 5 anos. E hoje os internautas já passam de 150 milhões.

Por trás da extraordinária valorização das ações de empresas ligadas à Internet está a expectativa de que a rede mundial se torne o principal meio de comunicação do planeta ou, pelo menos, o principal ambiente para negócios. De todo tipo: compra e venda de serviços, ações, trabalho e produtos tão variados quanto enguias carameladas ou acarajé. "Não há dúvida de que há uma transformação fundamental em curso", diz o brasileiro Gabriel Bitran, vice-reitor da Sloan School of Management, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). "Ninguém esperava ver isso tão rapidamente. A profundidade da transformação vai se tornar mais evidente em breve. Ainda não podemos nem conceber o que é possível. Nesse mundo, a distância física é irrelevante. A única distância será o tempo."

A principal transformação provocada pela rede no mundo dos negócios vem sendo chamada de comércio eletrônico, ou e-commerce em inglês. Trata-se, grosso modo, da compra e venda de produtos e serviços pela Web. O impacto disso tem sido tão profundo, que nos Estados Unidos já está se falando em e-company, e-engineering ou mesmo e-economy (que poderíamos desprecocupadamente traduzir como e-mpresa, e-ngenharia ou e-conomia). É o e do início desta reportagem. A revista americana Fortune fez, recentemente, uma brincadeira. Simulou um fundo de ações apenas com as empresas cujo nome começava com a letra e (eBay, E*Trade, eFax.com, eGames e-tc). Verificou o seguinte: o fundo valorizou 116% desde janeiro. As ações de tecnologia, com papéis de primeira linha como Microsoft, IBM ou Intel, tiveram uma valorização bem mais modesta, de 14%. "O valor de uma companhia ligada à Web não está baseado em lucros ou vendas, mas sim no potencial futuro da carteira de clientes que ela tem e no quanto ela conhece seus clientes", diz Bitran.

Potencial futuro. Expectativa. É disso que estamos falando. De acordo com a empresa de pesquisas Forrester Research, o comércio eletrônico global pela Internet já superou os 55 bilhões de dólares no ano passado. Mas ainda mais importante que isso são as previsões de crescimento: a Forrester estima que só o varejo on-line cresça nos Estados Unidos 69% ao ano até 2003, chegando a 108 bilhões de dólares, ou uns 3% do varejo americano. Já as compras e vendas corporativas globais, diz a empresa, deverão chegar até lá a pelo menos 1,3 trilhão de dólares, o que corresponderia a 9,4% de todo o comércio corporativo mundial. Isso contando apenas as vendas realizadas na Web do início ao fim. Sem falar na difusão de informações ou no uso da rede em parte da transação.

No Brasil, algumas empresas já andam se aventurando pelo planeta e, com variados graus de sucesso. Ainda não há medida confiável do impacto que o comércio eletrônico poderá ter para a economia brasileira, embora estime-se que, no Mercosul, sejam feitas vendas on-line de 200 milhões de dólares em 1999 e de cerca de 1,5 bilhão de dólares em 2003. Ou seja: um crescimento de sete vezes em quatro anos. Uma sondagem preliminar feita pela Edge Research, representante brasileira da Forrester, detectou, entre 52 empresas, que as vendas pela Internet podem crescer de 1% para 10% do faturamento total em apenas 3 anos (para refinar essa pesquisa, EXAME vai patrocinar com a Forrester uma sondagem mais detalhada, com 4 000 empresas brasileiras). Mas é preciso pôr cada país em seu lugar. Nos Estados Unidos, ao redor de um quarto da população (ou 57 milhões de pessoas) tem acesso à rede mundial. No Brasil, com todos os obstáculos legais, culturais e de infra-estrutura, as estimativas mais otimistas falam em 3,8 milhões de internautas este ano.

É gente como o técnico industrial Paulo Fickel, de Pelotas, Rio Grande do Sul. "No Natal, se não fosse a Internet, eu não chegaria em casa", diz ele. Aos 51 anos, Fickel costuma trabalhar em alto-mar. Fica dias embarcado em rebocadores, plataformas ou bóias. Sua última missão foi a construção do emissário submarino na praia do Guarujá, no litoral paulista. Uma vez por mês, durante um ano, ele voltava de avião para Porto Alegre e, na capital gaúcha, tinha de correr à rodoviária atrás de passagem para Pelotas. "Já fiquei sentado de madrugada horas esperando ônibus", diz Fickel. "Agora isso acabou. Quando acessei o site da rodoviária de dentro do rebocador, no Guarujá, meus colegas achavam que era brincadeira. Duvidavam que eu fosse comprar a passagem de ônibus em alto-mar."

Considere ainda a mineira Jacqueline Batista de Oliveira, de 29 anos. Há cinco anos ela mora em Toronto, no Canadá, onde trabalha com computadores para a polícia da província de Ontário. Faz um ano que, todo mês, ela gasta entre 350 e 400 reais em compras pela Internet no site Pão de Açúcar. Manda entregar tudo na casa da mãe, Iracema, que mora no bairro de Cidade Ademar, em São Paulo. "No dia das mães mandei uma cesta de café da manhã para ela", diz Jacqueline. "Compraria qualquer coisa pela Internet."

O Grupo Pão de Açúcar começou a vender a distância em 1995 e, ano passado, já esperava faturar pela Internet aproximada- mente 2,5% do total da bandeira Pão de Açúcar. Mas pergunte a Juliana Kfouri Behring, gerente de comércio eletrônico do Pão de Açúcar se o negócio está dando lucro e ela fará um trejeito enigmático, como quem guarda o terceiro segredo de Fátima. Claro que, por enquanto, a resposta não tem importância nenhuma no planeta e. Ficar de costas para as vendas on-line seria ignorar a população de alto poder aquisitivo que anda usando a rede para consumir. Só para dar uma idéia, a compra média na loja virtual do Pão de Açúcar cresceu de 190 reais, em 1996, para 230 reais, este ano, enquanto o gasto médio nos supermercados convencionais fica em torno dos 25 reais. De acordo com a última pesquisa realizada pela parceria do site Cadê? com o Ibope, 83% dos internautas brasileiros ganham mais de dez salários mínimos.

A cada dia que passa multiplicam-se os habitantes do planeta e, como Jacqueline ou Fickel. Justamente por estar quase vazio hoje, é lá - no planeta e - que estão as grandes oportunidades futuras de negócios. É onde a célebre equação que leva ao lucro pode não ser o mais importante no momento. "Hoje é preciso, mais que buscar um modelo de negócios pronto, mapear o novo ambiente", diz Marcelo Coutinho, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Coutinho compara quem se aventura na Internet hoje aos argonautas da Grécia antiga. Comandados por Jasão, eles partiram navegando pelos mares da Antiguidade atrás do carneiro que produzia o velo de ouro. Voltaram sem o ouro, mas trouxeram um mapa do litoral grego que permitiu à Grécia tornar-se a maior potência comercial do mundo antigo. (Coutinho dirige o projeto Argos, cujo objetivo é justamente gerar um mapa do mundo de negócios on-line no Brasil.) Como a turma de Jasão, os e-nautas de hoje estão na verdade preocupados com a expansão do território. Traduzindo para o idioma dos negócios: hoje o crescimento é muito mais importante que o lucro. Tendo isso em mente, a avaliação do mercado acionário americano para as empresas ligadas à Internet pode parecer razoável.

Quem são, então, os e-nautas que desbravam o planeta e? O mais conhecido é Jeff Bezos, o cérebro por trás da Amazon.com. Ele abandonou Wall Street para criar a livraria virtual em 1994. Fale em lucro perto de Bezos, e ele na certa dará uma de suas retumbantes gargalhadas. Pudera. O faturamento da Amazon.com cresceu 313% só no ano passado. O que são 124,5 milhões de prejuízo diante da carteira de 8,4 milhões de clientes espalhados pelo planeta Terra, digo, e? Diante do inapelável fato de que, graças a sua participação na Amazon, Bezos tornou-se um dos homens mais ricos do mundo, com uma fortuna estimada em 12,3 bilhões de dólares? Não à toa, Bezos ri à toa.

Outro desbravador é Tim Koggle, o presidente do Yahoo!. Foi Koggle quem transformou o site de busca criado na faculdade por Jerry Yang e David Filo no que é a porta de entrada - ou portal, como quer o dialeto dos internautas - mais usada para acessar a rede. Foram nada menos que 31 milhões de acessos só no mês de março. Vivendo basicamente do pagamento dos outros sites para aparecer em seus índices de busca ou em anúncios, o Yahoo! cresceu ano passado 202%, faturou 203 milhões de dólares e, pasme, lucrou 25,6 milhões. Graças a isso, Koggle transformou as ações do Yahoo! em uma das blue chips mais cobiçadas de Wall Street, preferidas até pelos conservadores fundos de pensão americanos. Valor de mercado? Trinta bilhões de dólares, mais que o banco J.P. Morgan, que vale 23,8 bilhões.

"Os investidores estão olhando para a Internet e verificando que há uma revolução incrível em andamento. Trata-se de uma revolução na escala da Revolução Industrial. Ela gerou centenas e centenas de novas empresas que acabaram se tornando empresas enormes", disse à revista Business Week a presidente do site eBay, Meg Whitman. Em setembro de 1995, quando pôs no ar o eBay, Pierre Omidyar estava querendo apenas facilitar a vida de sua mulher, uma fanática colecionadora daqueles receptáculos para balas Pez (ela tem hoje uma coleção com mais de 400 itens), uma mania entre americanos. O site foi concebido como uma forma de ela e outros colecionadores poderem interagir fazendo trocas e leilões de peças repetidas.

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Clique aqui para voltar para a parte anterior Reprodução da Reportagem de Capa da Revisa Exame 690 - 16/06/1999. Clique aqui para ver a próxima parte da reportagem

Página publicada em 02/09/99, última revisão em 14/10/00. CiDaSE